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Quem tem medo de bissexuais?

Esse texto nasceu de uma sensação muito familiar quando começo a falar sobre bissexualidade. Quando toco no assunto, especialmente se eu estiver respondendo a uma besteira que alguém falou — ou mesmo que eu esteja só demonstrando que eu existo —, é como se eu falasse para uma sala cheia de gente, que de repente se cala enquanto todo mundo desvia o olhar, ou analisa as unhas.


Agora mesmo tenho o sentimento de que só pessoas bissexuais vão ler isso até o fim.


POR QUÊ?


Hoje, depois de muito desgaste e muita discussão, resolvi tentar entender isso. Por que falar sobre ser mulher bissexual incomoda tanto? É quase palpável o desconforto em que presenciei isso, que dirá pela internet. Aposto que outras mulheres bissexuais partilham dessa mesma experiência. Por que relatos pessoais de mulheres bissexuais sobre as suas experiências são ignorados, ou até tripudiados?


“Mas você acha que sofre?” é o que dizem os olhos, a postura corporal, os comentários desconfiados.


Vamos começar por aí, então: esse tipo de questionamento aparece das mais variadas formas, e o mais interessante não é o que ele levanta, e sim o que ele omite.


A PALAVRA “BIFOBIA” PARECE UM PALAVRÃO.


“Você acha que sofre o suficiente para cunhar um termo só para isso? Então me prove.” Ah, o número de vezes em que eu entrei nessas discussões ou as vi acontecer sem que a outra pessoa demonstrasse qualquer vontade de aprender.


É engraçado que, diferente do que acontece com as outras mulheres (heterossexuais e lésbicas), quando se fala das violências específicas que passamos motivadas pela nossa bissexualidade, isso é recebido com apatia. Falar de bifobia não gera nenhuma comoção. Parece até que acordamos um dia pensando: “Opa, vou aqui inventar um nome diferenciado e umas experiências ruins porque eu sou muito diferentona e gosto muito de chamar atenção.” Tipo certos estereótipos sobre mulheres bissexuais, mesmo.


Estereótipos estes tão atrelados a um imaginário coletivo que fomentam uma cultura de violência:

  • temos 46,1% de chances de sermos estupradas. É uma taxa 2,6 vezes maior do que as chances de mulheres heterossexuais e 3,5 vezes maior do que lésbicas;

  • 49,3% das mulheres bissexuais são vítimas de violência íntima severa de cônjuges;

  • mulheres bissexuais têm 61,1% de predominância no que tange estupro, violência física e perseguição por parceiros íntimos;

  • 40% das pessoas bis já consideraram o suicídio. Isso é quatro vezes o número de pessoas heterossexuais e duas vezes o número de pessoas homossexuais;

  • 28% das pessoas bissexuais revelam a sua orientação sexual para todas (ou quase todas) as pessoas importantes em suas vidas, enquanto esse número é de 77% dos homens gays e 71% das mulheres lésbicas;

  • entre mulheres e 18 a 44 anos, 29,4% das mulheres bissexuais são pobres, enquanto esse número é de 22,7% entre as lésbicas e de 21,1% entre heterossexuais.


Afinal, com o que eu, mulher bissexual, deveria me preocupar, né?


Estranhamente, apontar esses números parece ser uma verdade inconveniente. Talvez porque é o início de uma evidência de que algo diferente acontece com as mulheres bissexuais. Se elas são só “meio hétero e meio lésbicas”, por que as estatísticas são tão diferentes? Será que esses números teriam alguma ligação com esse imaginário da mulher insaciável, hipersexualizada, promíscua? Ou com a imagem de não-confiável, mau caráter e indecisa, que até a própria comunidade sexodiversa alimenta?


Ao invés de partir para essa discussão, geralmente esses dados são recebidos com suspeita. Quem os coletou? Qual foi a metodologia? E esses dados aqui, no Brasil? Como se a discussão e pesquisa brasileira sobre bissexualidade (e sexualidade) no geral fosse super recorrente e fácil de acontecer.


Ou como se o real objetivo de colocar tais dados à mesa, ainda que eles tenham uma perspectiva global, fosse para receber uma medalha de Maior Oprimida, de uma competição silenciosa que simplesmente não existe. Quando tudo o que estamos dizendo é: sofremos algo específico, e sofrimento é sofrimento. Ninguém usa a narrativa de “descansar da opressão” para gays e lésbicas que não se assumiram para família e no trabalho, ou que “não dão pinta”, mas estranhamente é um argumento muito usado para nós, especialmente para mulheres que estão em relacionamentos heteroafetivos.


E aí, o debate não acontece, porque nem a leitura sobre essas estatísticas acontece e não parece haver vontade para que aconteça. Como ter empatia sem se educar sobre a realidade da outra pessoa?


O PRÓXIMO DESCONFORTO É O TAL DO PRIVILÉGIO MONOSSEXUAL.


Se uma mulher lésbica chegou até aqui, esse é o momento em que ela levanta e vai embora. “Privilegiada, eu? Que privilégio tenho eu de me relacionar com mulheres?”


Bom, aí dá pano pra manga, né. Privilégio é sempre um assunto espinhoso, porque no meio militante, ninguém quer tê-lo. Ninguém quer admitir que é opressor em algum momento — mas acontece. E o problema não é exatamente o privilégio, mas o que você faz em relação a isso.


No meio LGBT, falamos de privilégio hétero (as pessoas heterossexuais jamais saberão dos perrengues que é se declarar LGBT e sofrer punições por isso) e de privilégio cis (as pessoas cisgêneras não precisam se preocupar com coisas básicas que pessoas trans e travestis passam). Mas privilégio monossexual? O quêee?


Sim, amores. As sexualidades cujos desejos e afetos se direcionam somente a um gênero são amplamente conhecidas na nossa sociedade. Elas podem não ser todas APROVADAS e vistas com bons olhos; isso, só os heterossexuais têm. Mas ainda que não haja aceitação, existe a ciência e a legitimação dessa existência.


Um exemplo que dou é que minha avó pode odiar a ideia de ter uma neta lésbica (e, portanto, ser lesbofóbica), mas ela SABE reconhecer o que é uma lésbica. Ela pode não usar o nosso vocabulário militante, mas existe um conceito na cabeça dela (e da maioria das pessoas) de que gays e lésbicas existem. Está na TV, apareceu na novela, o pastor está lá pregando contra essas pessoas. Não é algo fora do entendimento.


E, convenhamos, privilégio monossexual não significa que as pessoas ACEITEM todas as sexualidades mono, como no caso de lésbicas e gays.


Uma situação que exemplifica o privilégio (ou o reconhecimento da legitimidade monossexual em uma pesquisa norte-americana): 1/4 dos terapeutas achavam que a bissexualidade de seus pacientes era relevante para o objetivo da terapia; e desses, 7% tentaram “convertê-los” a heterossexualidade e 4% tentaram “convertê-los” à homossexualidade.


Porém, o que preocupa as pessoas em silêncio nessa sala alegórica não é o que a inexistência do conceito de bissexualidade no senso comum faz com o psicológico da comunidade bissexual. A preocupação não é com esse não-lugar, com a invisibilidade ou com o tratamento rotineiro que a mídia faz de que a bissexualidade é uma coisa nova, uma moda, uma coisa do futuro; nem com as consequências psicológicas desse não-lugar mesmo na comunidade LGBT (como as taxas de depressão, ansiedade e propensão ao suicídio entre mulheres bissexuais sendo maiores que entre lésbicas e mulheres heterossexuais).


A preocupação não é em ouvir, mas sim em negar ou esvaziar esse termo até que ele signifique apenas “privilégio hétero”, porque aí incomoda menos.


O QUE REALMENTE ASSUSTA EM TER BISSEXUAIS POR PERTO?


A bissexualidade, tal qual a discussão de transgeneridade, rompe com muitos binários onde se alicerçou a discussão de orientação sexual e identidade de gênero. Se trazemos a negação de ambas como algo essencial (“eu nasci assim”), isso representa uma ameaça. Até por isso que, quando há bifobia, em geral há transfobia envolvida também. Os debates de orientação e identidade de gênero se entrelaçam continuamente.


No fundo, até entendo de onde parte tamanha aversão a legitimar e discutir bissexualidade. É mais fácil só deixar no campo das discussões pessoais (“eu não concordo”, “eu não me relaciono com essas pessoas por causa das minhas experiências pessoais”, “eu não acredito nesses dados”) do que entrar na complexidade que é discutir experiências afetivo-sexuais diferentes do preto-no-branco ou do se-não-é-X-é-Y. Deve ser assustador mesmo.


E “fobia” é exatamente o que dá conta desse comportamento.


Eu tô vendo através da bifobia de vocês. Vocês estão?


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