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Armários da liberdade

Por Sara Hanna, do Coletivo Abrace


Percebe que não é hétero, também sabe que não é homo. Diz pra si que tanto faz e que não precisa de rótulos. Segue a vida dizendo ser livre, e em meio a tantas acusações, dúvidas, fases e apontamentos, decide não pensar mais sobre como funcionam suas atrações. Assume que é questão de viver o momento e que ninguém tem a ver com isso. E não mesmo.


De repente vê alguém que diz abertamente e com orgulho sentir atração por pessoas de vários gêneros. Descobre que existem grupos que discutem temas que lhe acolhem e compartilham suas vivências. Pessoas que entendem que há muito a lutar para desconstruir a bifobia (externa e interna), mas que também podemos nos orgulhar de quem somos e não mais nos envergonhar ou esconder para evitar sofrer preconceito dentro e fora da comunidade LGBTQIA+.


Sente-se parte agora, mesmo que tenha que lutar por isso.


Mas algo ainda incomoda. Não sabe bem o que seria, mas há um quê de agridoce na tal liberdade sexual pregada. Parece que te cobram mais sexualmente agora. Decide ignorar e seguir sua vida livre. Livre? Liberdade sexual é justamente ser livre para fazer o que quiser de sua vida sexual e quando quiser. Inclusive nunca.

Houve um tempo em que sentia que precisava ter relações sexuais com mais pessoas, ou com mais frequência, pelo menos estar sempre dizendo que sente falta de sexo ou quer fazer, ou estava atraído por alguém. Se forçava a não parecer diferente dos demais até que começou a parecer natural agir assim. Porém isso começou a desgastar sua essência e perder o sentido. Algo parecia estar errado.


Exames, conselhos, terapia... Até que achou o termo: assexual. Quando se deparou com a definição básica do termo apenas ignorou. Aquilo não tinha a ver com ele. Gostava de se enxergar como alguém que gostava muito de sexo, e não era moralista com o assunto, estava seguro quanto a isso.


Moralistas, era assim que enxergava o grupo. Seguiu ignorando o incômodo.


Depois de uns anos se deparou com o conceito de escala cinza da assexualidade, e termos como grayssexual e demissexual começaram a chamar atenção e foi pesquisar. Se identificou e dessa vez o medo invadiu. Como podia ser assexual se já tinha transado com tantas pessoas? Como podia ser assexual se era tão livre sexualmente? Não podia ser.

Quanto mais lia e conhecia pessoas, mais fazia sentido e foi acessando vários sentimentos antigos e conflituosos sobre ser pan e ao mesmo tempo não sentir atração sexual 90% das vezes, e mesmo assim praticar. E estar em grupos onde o esperado era que demonstrasse o contrário do que sentia pra provar que não era moralista.


Descobriu que existem muitas pessoas que não sentem essa atração sexual da forma padrão, ou pelo menos não com a mesma frequência que a maioria das pessoas ao redor sentem ou alegam sentir, e que como ele se forçaram a seguir um caminho imposto.

Depois de ter se libertado da pressão por "ter que escolher um lado", doeu perceber que se violou por tanto tempo, fazendo algo porque ensinam que é a única possibilidade de atração e relação que se pode ter. Doeu entender que tinha caído em outra regra social que padroniza as relações e afetos, e pensou em quantas regras mais ainda era preso sem se dar conta.


Socialmente somos regidos por normas que limitam muito nossos desejos, quereres, potenciais, e quando nos questionamos sobre alguma norma a qual nos impuseram pensamos que nos libertamos, mas enquanto não observarmos todos os armários possíveis, talvez a gente esteja em outro. Por exemplo, todo mundo é ensinado a ser heterossexual (heteronorma), mas geralmente quando notamos que não somos, te ensinam a se entender como homossexual, até no próprio meio, e não há a ideia de que podemos ter multiatrações, portanto é mais uma norma, a de ter que ser monossexual (Atração sexual por indivíduos de um gênero apenas). Te ensinam a ser sexual/alossexual (sexonorma/alonorma), mas ninguém te diz que existem pessoas que não sentem atração sexual (assexuais) e que está tudo bem com isso. Tampouco ensinam que algumas pessoas são arromânticas. Ninguém te ensina que existem pessoas transgêneros, você é ensinado a seguir um padrão cisgênero, mesmo que sinta que isso não representa sua existência. Quando se entende trans, ensinam que deve seguir a dicotomia binária de “Homem X Mulher”. Aprendemos a seguir a monogamia como única forma de relacionamento. Te ensinam a ser branco, mesmo que você não seja, te ensinam a ser magro, ou desejar desesperadamente ser. Te ensinam a desaparecer como indivíduo para que siga a chamada normalidade.


Agora sente que tirou um peso enorme de expectativas alheias de cima dos ombros, e se sente livre. Mas quantas regras existem para que possamos desconstruir padrões? Qual o tamanho desse jogo de regras? Existe realmente uma liberdade?


Talvez liberdade seja poder se questionar de tempos em tempos, poder conhecer outras vivências e avaliar se nossas certezas nos libertam ou aprisionam.

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