Texto de Natasha Avital. Imagem de capa criada por Caio Passos.
Dia 26 de setembro, ocorreu o Festival Bi+, um evento online de quase 10 horas de programação, organizado pela Frente Bissexual Brasileira, da qual o Bi-Sides faz parte (e que vocês podem ver aqui, dividido em 02 vídeos ) A frase anterior é algo que, há 10 ou mesmo 05 anos atrás, eu jamais me imaginaria escrevendo.
Fui a segunda pessoa a integrar o Bi-Sides, quando, na Caminhada Lésbica e Bissexual de 2010, vi uma moça com a bandeira bi em cima de um carro de som e corri loucamente atrás dela pra não a perder de vista quando ela desceu. Essa moça era Daniela Furtado, que buscava pessoas para um projeto voltado à visibilidade bissexual no Brasil.
Na época, o Bi-Sides era um site, dedicado a produzir e traduzir material sobre bissexualidade, já que havia pouquíssima coisa sobre o assunto em português e menos ainda escrita no Brasil. Criamos um grupo no Google Grupos, fizemos algumas reuniões e eventos como piqueniques. Tudo com muita garra e paixão, porém de forma pouco organizada, pois nem nós nem as poucas pessoas que se juntaram a nós de forma mais frequente tinham muita experiência com a militância, e as ferramentas proporcionadas pela internet à época não facilitavam tanto a comunicação e a divulgação de conteúdo como hoje.
Após um tempo, o projeto morreu, mas foi ressuscitado em forma de grupo do Facebook quando essa rede social se popularizou no Brasil. O Bi-Sides se tornou uma referência para pessoas que buscavam alguém pra falar de bissexualidade em eventos, reportagens, trabalhos acadêmicos. O grupo do Facebook que começou despretensiosamente hoje é um lugar em que mais de 4 mil pessoas podem conversar livremente sobre suas vivências e encontrar comunidade.
Comunidade. Essa é a palavra que mais me vem à mente quando penso no sentido da militância bissexual, e em tudo o que conquistamos em uma década de luta. Quando o Bi-Sides surgiu, a bandeira bissexual não era conhecida (a que a Dani segurava naquele carro alegórico era importada). Quando começamos a militar, nos perguntávamos se fazia sentido usar a palavra “bifobia” pra falar das opressões específicas que sofríamos, já que não era um termo utilizado em português. O Bi-Sides era o único coletivo bissexual do país (não o primeiro, cabe lembrar: o CBB - Coletivo Bissexual Brasileiro, que na época já não estava mais ativo, é um marco importantíssimo na história do movimento).
A pauta bissexual era basicamente lembrar ás pessoas que existimos. Chega a ser assustador pensar que, em pleno 2010, nossa grande luta era o direito básico de ter nossas existências reconhecidas.
Parecia impossível pensar em uma Frente Bissexual Brasileira , com representantes de 11 coletivos, e diversos ativistas independentes. Parecia impossível pensar que teríamos gente suficiente, assunto suficiente, público suficiente, pra que existisse um festival de quase 10 horas de duração destinado às nossas vivências. Parecia impossível pensar que precisaríamos fazer curadoria e deixar muita gente talentosa de fora, porque não haveria tempo suficiente pra exibir os trabalhos de todes artistas que se interessaram em mostrar sua obra.
Muitos momentos do Festival foram emocionantes pra mim e pra várias outras pessoas que o organizaram e assistiram, mas o mais marcante pra mim pode parecer pitoresco: o bate-papo meu com o Jeison Miranda sobre como é ser um homem bissexual e tatuador. Se me emociono novamente ao escrever isso, é porque é muito significativo que tenhamos avançado o suficiente pra conseguir falar da nossa pluralidade, do que significa ser uma pessoa bissexual que tatua, que escreve, que desenha, que é negra, branca, asiática, trans, cis, mulher, homem, não-binária, com deficiência, sem deficiência, jovem, de meia-idade, casada, solteira, monogâmica, não-monogâmica.
Que a gente tenha saído do básico de gritar “Pessoas bissexuais existem!” e “Existem discriminações específicas que atingem bissexuais sim!” pra discutir as opressões que sofremos, os meios de superá-las, e as diversas formas de vivenciar essa identidade, em conjunto com outras opressões, privilégios, experiências de vida, e tudo aquilo que faz de nós pessoas únicas.
Um tema recorrente nas mesas de conversa do festival foi a experiência de algumas pessoas de se sentirem totalmente isoladas e sem lugar no mundo quando perceberam que suas atrações e afetos eram direcionadas a mais de um gênero, pois o mundo lhes dizia que as únicas possibilidades de existência eram a homo e a heterossexualidade.
Todas as vezes em que essa experiência era mencionada, eu lembrava de um grupo do qual faço parte. Não é um grupo LGBT, mas todos os dias vejo nele adolescentes, inclusive adolescentes que não moram em grandes centros urbanos,falarem com naturalidade sobre suas atrações por mais de um gênero. Não só isso: vejo adolescentes que se identificam como bissexuais e pansexuais.
Talvez quem é mais jovem não entenda o quanto isso é significativo, mas do alto dos meus 34 anos, eu sei o tamanho da vitória que é ver que a bissexualidade se apresenta para esses garotos e garotas como uma existência possível de ser vivida. O tamanho da vitória que é ver a tranquilidade de seus processos de entendimento da própria identidade, e ver que mesmo pra quem vive em contextos opressores, o sofrimento vem do preconceito externo, não de qualquer conflito interno a respeito de suas atrações. O tamanho da vitória que é ver pessoas tão jovens reinvidicarem pra si uma palavra e uma identidade que por muito tempo nos foi escondida e que o mundo ainda tenta arrancar de nós.
Um tempo atrás, a maravilhosa Cacau Rocha, que durante muito tempo militou no Bi-Sides, me disse, ao me ver sobrecarregada: “O movimento bi brasileiro não vai acabar se você tirar umas férias”. É um momento que considero um divisor de águas, pois durante muito tempo éramos tão poucas pessoas na luta que a ausência de qualquer uma delas tinha sim um impacto significativo. É óbvio que toda pessoa tem coisas únicas a trazer pra luta e todo mundo que se ausenta faz falta, mas sinto que cada vez menos nos vemos na posição de ser a única pessoa que fala sobre a pauta bissexual em algum evento, ou em algum movimento social ou artístico.
Me ausentei de diversas reuniões de preparação do Festival por não estar em condições emocionais de participar delas, e não vou negar que sentia culpa, mas ao mesmo tempo tinha certeza que havia diversas pessoas muito competentes e engajadas fazendo o necessário pra que o evento acontecesse.
Hoje, ir a um evento LGBT e ver a bandeira bi à venda, passar em uma banca de jornal e ver que lá há diversos bottons diferentes com a temática bi e pan, pode não parecer nada demais. Mas pra quem está há mais de uma década no movimento bissexual do Brasil é a prova concreta de que nossos esforços para construir uma comunidade em que pessoas como nós possam se sentir acolhidas não foi em vão.
Em muitos momentos pareceu que estávamos gritando para o vazio, escrevendo coisas que só meia dúzia de pessoas iam ler, e que nada do que faríamos teria um impacto significativo na vida de ninguém. Em um dos eventos desse setembro, ouvi de uma ativista que o Bi-Sides foi importante em seu processo de autodescoberta e militância. Tenho certeza de que a militância dela é e será importante pra autodescoberta e militância de outras pessoas.
Então eu gostaria de dizer a todes vocês, que tem um projeto artístico ou de militância voltado á bissexualidade, vocês que se dedicam a falar do tema em suas redes sociais, seus ambientes de militância, rodas de amigues, e que às vezes sentem que não fazem diferença alguma: vocês fazem. Vocês podem estar mudando a vida de alguém sem sequer ter consciência disso.
Respeitem seu tempo, se cuidem, não se sintam na obrigação de militar o tempo inteiro nem de expor sua sexualidade em ambientes em que isso pode ser um risco. Mas tenham certeza de que, toda vez que vocês dão visibilidade a suas existências (cada pessoa na medida do que lhe é possível), vocês estão sendo prova viva de que nossas vidas são vidas vivíveis. E isso é revolucionário.
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