por Natasha Avital
Dos muitos mitos que cercam a bissexualidade e alimentam a bifobia, um me parece especialmente pernicioso e ofensivo: a idéia de que bissexuais são ”privilegiad@s” que, a qualquer momento, podem ”trair o movimento” e embarcarem em uma relação hetero, aproveitando assim todas as ”vantagens” que isso traz. Antes de qualquer coisa, eu gostaria de dizer que não ser desrespeitad@, não ser alvo de olhares, de gracejos, não ser maltratad@ em espaços públicos, etc, não deveria ser uma ”vantagem”. É triste vivermos em um mundo em que simplesmente não ser aviltad@ por sermos quem somos é um luxo.
Mas vamos passar ao principal, e mostrar porque é completamente equivocada a idéia de que bissexuais são ”traidores” ou pessoas que não merecem um espaço no movimento LGBT, simplesmente porque existe a possibilidade de que nós nos engajemos em relações heterossexuais. Sim, existem inúmeras pessoas por aí que estão no armário quanto à sua bissexualidade. Nenhum@ homossexual pode fingir que não compreende essas pessoas. A homofobia assusta, e faz com que muit@s tenham medo das consequências de assumir sua orientação sexual. Se até mesmo gays e lésbicas muitas vezes acabam por fingir uma heterossexualidade que não têm, e envolver-se em relacionamentos e até mesmo casamentos com pessoas do sexo oposto, ainda que no fundo sofram por sentir que tais relações são incompletas…será que é tão difícil entender que quem tem a possibilidade de viver completamente feliz em uma relação hetero opte por esse caminho? Mas não é dessas pessoas que a maioria dos bifóbicos estão falando quando nos acusam de nos rendermos ao ”privilégio” hetero. O alvo dessas acusações são pessoas auto-identificadas como bissexuais, muitas delas com um passado ou um presente de envolvimento com pessoas do mesmo sexo. São pessoas que muito provavelmente já sofreram homofobia, ou que ainda a sofrem, e que provavelmente ainda a enfrentarão no futuro. E, mesmo assim, o simples fato de que tais pessoas podem um dia envolver-se em relações que não geram reações homofóbicas, é o suficiente para que sejam olhadas com desconfiança pela comunidade gay e lésbica.
Em primeiro lugar, sejamos realistas: eu tenho perfeita consciência do quanto faz diferença, na sociedade em que vivemos, namorar alguém do mesmo sexo e alguém do sexo oposto. É uma das minhas maiores razões para lutar contra a homofobia. Bissexuais em geral estão em uma posição privilegiada para perceberem a injustiça, a irracionalidade, a falta de qualquer suporte lógico ou moral para o preconceito contra relações entre pessoas do mesmo sexo. Afinal, uma mulher que passa anos andando de mãos dadas com um homem pela rua sem sofrer qualquer aborrecimento, sente a homofobia bater com tudo na cara quando, ao repetir o gesto com uma mulher, é obrigada a ouvir gracejos de desconhecidos. Poucas coisas cimentam tanto a compreensão do caráter absurdo da homofobia quanto saber que o mesmíssimo afeto que antes era encorajado e celebrado agora é motivador de chacota e agressão, sendo que nada mudou a não ser o sexo da pessoa que é objeto deste afeto. Digo isso para que ninguém me aponte o dedo, e me acuse de ignorar que estar em uma relação amorosa, respeitosa e satisfatória com alguém do sexo oposto ao nosso é extremamente mais tranquilo, de vários pontos de vista (inclusive o jurídico) do que estar em uma relação amorosa, respeitosa e satisfatória com alguém do mesmo sexo que o nosso. É sim. Mas vamos deixar uma coisa bem clara: Se eu vivo em um mundo que permite que eu exiba com orgulho meu namorado, mas fez com que estranhos se sentissem no direito de me gritar grosserias por estar em um encontro com uma mulher, a culpa é de vários fatores: do preconceito religioso, do machismo da sociedade, da falta de escolas que eduquem para a diversidade, dos estereótipos sobre gays e lésbicas reproduzidos pela mídia, etc, etc, etc…Sabe de quem NÃO é a culpa? MINHA! Pois veja só você, acredite se quiser, eu não escolhi nascer em uma sociedade homofóbica, machista e heteronormativa. Poucas coisas são mais cruéis do que culpar alguém por algo do qual a pessoa é vítima, e é exatamente esse jogo de ”culpar a vítima” que se faz quando se denigre bissexuais simplesmente por viverem em um mundo que mostra mais respeito por aqueles que percebe como ”hetero” do que os que percebe como ”homo”.
Em segundo lugar: Nós não tentamos fingir que somos hetero! Nós corrigimos os que presumem que somos hetero! Muit@s de nós militam no movimento LGBT (onde enfrentamos a bifobia de gente como vocês)! Muit@s de nós se identificam abertamente como bissexuais (e enfrentamos a bifobia de heterossexuais E de gente como vocês)! Muit@s de nós inclusive tomam sobre si a árdua tarefa de educar as pessoas ao seu redor sobre bissexualidade (ê tarefa ingrata!) Portanto, a ideia de uma pessoa bissexual ”se passando por hetero” de forma a se esconder confortavelmente do preconceito homofóbico num cantinho seguro não corresponde à realidade de muit@s bissexuais por aí. Ouso dizer que não corresponde à realidade da imensa maioria das pessoas que se identificam abertamente como bissexuais.
Em terceiro lugar: estando em uma relação hetero ou homo, estando casad@s, solteir@s, ou celibatári@s, a homofobia continua nos afetando. O comentário homofóbico do familiar, do colega de trabalho, da professora, não machuca menos só porque eu namoro um homem. Ter que ouvir o Papa dizendo que a humanidade precisa ser ”salva” do comportamento homossexual não foi menos aviltante, não me deixou menos doente, simplesmente porque na época eu tinha um namorado, e não uma namorada (e ter um namorado não me impediu de protestar na internet da forma extremamente modesta que me estava disponível, em um protesto que continua até hoje) Muitas vezes @ bissexual acaba sendo até mesmo mais expost@ ao preconceito, já que muita gente nos percebe como heteros…inclusive os homofóbicos, que sentem-se livres para destilar seus preconceitos na nossa presença (e quebram a cara quando vêem que nós também somos ”aquela gente”) Outr@s bissexuais são vítima de homofobia, por terem características identificadas pelas pessoas ao redor como homossexuais. Ou seja, um bi considerado ”efeminado” ou uma bi considerada ”sapatão” vão continuar apanhando do preconceito homofóbico independentemente do sexo de seus parceir@s. Essa ”fuga para o conforto da heterossexualidade” não existe para nós, que já saímos do armário como bissexuais, simplesmente porque nós não somos hetero! Todo gay e lésbica que nos critica deveria fazer uma reflexão sobre o tempo em que estava no armário, e responder uma simples pergunta: ”Eu me sentia inserid@ no mundo hetero? As manifestações de homofobia ao meu redor deixavam de me entristecer e enraivecer simplesmente porque as pessoas não conheciam minha orientação sexual?” (ok, foram duas perguntas…me processem!)
Em quarto lugar, e mais importante: nós não acordamos um dia e pensamos ”Que saco esse negócio de preconceito! Tá aí, vou arrumar um@ parceir@ do sexo oposto, e tá tudo resolvido!” Nós, como a maioria das pessoas, simplesmente nos apaixonamos por quem nos apaixonamos, por todas as razões certas e muitas das erradas. Nós conhecemos pessoas na balada, na fila do banco, e no campeonato de arco-e-flecha. Algumas destas pessoas nos fazem querer conhecê-las melhor. Algumas destas pessoas nós conhecemos melhor. Algumas destas pessoas fazem com que nós desejemos conhecê-las cada vez mais e melhor, melhor do que qualquer outra pessoa, pois acabamos por amá-las. É o que acontece com muita gente, ou ao menos com quem tem sorte. A única diferença é que, no nosso caso, não nos faz diferença se a tal pessoa que nós queremos continuar conhecendo pro resto de nossas vidas (tá, eu sou uma romântica, e daí?) é do mesmo sexo que o nosso, ou de um sexo diferente.
E é aí que eu pergunto aos gays e lésbicas que se sentem no direito de nos olhar com desconfiança, de negar a nossa voz, de negar nosso lugar no movimento LGBT (ora, veja você, não é que tem um B ali?): o que exatamente vocês propõem que nós façamos quando o sexo de quem amamos é diferente do nosso? Qual é a solução de vocês para este não-problema (que só vocês insistem em chamar de problema)? Será que é, neste caso, descartar a possibilidade de viver o amor? É limitar a apenas um sexo o número de pessoas com quem podemos formar laços significativos pra dividir nossa vida? Em nome de quê? A quem é que isso beneficia? Traz ”visibilidade”? Quanta, e a qual preço? Será que o fato de eu estar nas ruas de mãos dadas com uma mulher, e não com um homem, levará mais rápido à criminalização da homofobia? E será que a frustração de descartar de antemão tantas possibilidades de realização amorosa é um preço que eu devo pagar por isso? Pior, será que é um preço que eu tenho obrigação de pagar? Com qual fundamento? A ironia seria cômica se não fosse tão trágica: durante séculos homossexuais ouviram que deveriam sacrificar sua identidade em nome de um bem maior. É um discurso que se repete até hoje. Homossexuais devem ignorar seus desejos pois a sociedade ordena que se reproduzam, que gerem prole. Homossexuais devem esconder sua homossexualidade ”pelo bem das crianças”. Uniões homossexuais devem permanecer à margem da lei para proteger um conceito vago chamado ”família” (de quem? A minha é que não é!) O discurso é sempre o mesmo…viver pela metade é o sacrifício que gays e lésbicas devem fazer para proteger algum bem maior vagamente definido que, de alguma maneira que ninguém consegue explicar, é supostamente atingido por um comportamento particular que diz respeito apenas aos envolvidos nele. E é exatamente isto que vocês, gays e lésbicas bifóbicos, estão pedindo de tod@s nós quando condicionam o seu respeito à nossa rejeição dos ”privilégios” heteronormativos.
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