Texto de Julia Lima Bezerra sobre LGBTs nos espaços de saúde.
Sou médica cisgênero e bissexual, cursando o segundo ano da residência em Medicina de Família e Comunidade, e nos últimos três anos tenho trabalhado na Atenção Primária, atendendo principalmente moradoras e moradores de comunidades no Rio de Janeiro. Como junho é o mês do Orgulho LGBTIA, tenho refletido muito sobre as experiências que tive com pacientes trans e homo/bissexuais, e como é nítido o quanto a LGBTfobia tem impacto na saúde e nos processos de adoecimento dessa população.
Quando se fala em saúde LGBT, as pessoas tendem a pensar automaticamente em AIDS e infecções sexualmente transmissíveis. É claro que esses são temas importantíssimos que precisam receber atenção, mas quando eu penso em saúde LGBT a primeira coisa que me vem à cabeça infelizmente é a violência. O Brasil é um dos países com maior incidência de assassinatos motivados por homofobia e tem o maior registro de homicídios de pessoas trans. Essa é a ponta do iceberg - na base que sustenta e autoriza o assassinato motivado por ódio estão muitos outros casos cotidianos de violência física, moral e psicológica, que não costumam ser formalmente denunciados, mas com mais frequência chegam aos ouvidos dos profissionais de saúde.
Nos últimos anos tivemos alguns avanços importantes em relação ao combate ao preconceito e aceitação da diversidade sexual, mas a história da maior parte dos meus pacientes LGBT ainda é marcada por violência familiar, na escola e no trabalho. Isso às vezes aparece na forma da criança que está indo mal na escola, a mãe traz ao médico pensando em dislexia ou TDAH e você acaba descobrindo que na realidade o menino sofre bullying por ser afeminado. Às vezes é a adolescente que parou de fazer o tratamento de tuberculose, não vem mais tomar os medicamentos, a família não colabora muito e no final a gente descobre que isso tudo começou na mesma época em que ela apareceu com uma namorada. Às vezes é no paciente que tem HIV e há anos está com o vírus controlado, sem causar problemas de saúde, mas está completamente adoecido pela depressão e ansiedade, com medo que alguém descubra seu status sorológico, pois já foi tão difícil se assumir gay, se descobrirem além disso que tem HIV não consegue imaginar o que aconteceria.
Os paciente que são trans costumam ser ainda mais vulneráveis. Entre mulheres trans e travestis é quase regra que a pessoa em algum momento tenha recorrido a trabalho sexual, porque o mercado de trabalho formal é praticamente inacessível. Isso geralmente é consequência de uma sequência de violências que marginalizam a pessoa - discriminação pela família culminando em expulsão de casa, a pessoa acaba largando a escola (onde também já sofria preconceito), não terminando os estudos as oportunidades de trabalho são mais limitadas e por fim a transfobia escancarada que leva à recusa de contratação dessas pessoas pelo simples fato de serem trans. Não é incomum que a pessoa sofra preconceito dentro do próprio serviço de saúde. Já tive paciente que combinava de chegar logo antes do horário de fechamento da unidade, quando a sala de espera estava mais vazia, ou passava para pegar só uma receita e pedia para que eu entregasse pessoalmente do lado de fora da clínica. Uma clássica é a pessoa aguardar consulta e na hora de ser chamada o profissional grita o nome de registro “José da Silva”, mas quem levanta da cadeira é uma mulher, que agora foi exposta para todo mundo da sala de espera como sendo transexual. Para evitar esse tipo de constrangimento, é importante que os prontuários eletrônicos tenham espaço para preencher o nome social, de forma que mesmo se o indivíduo não tiver mudado o nome nos documentos de identidade ainda assim poderá ter um atendimento de saúde com respeito ao nome que de fato usa e se identifica.
Há também a problemática da LGBTfobia pelo próprio profissional de saúde. A pessoa cria coragem para sair de casa, botar a cara na rua, procurar o serviço de saúde, encarar os olhares na sala de espera, para entrar no consultório e no final sofrer discriminação de quem deveria estar prestando um serviço de cuidado. Não é de se admirar que muitas pessoas LGBT evitem ao máximo procurar médicos ou serviços de emergência, e quando vão não costumam revelar sua orientação sexual ou identidade de gênero. Existem dados do Dossiê Saúde das Mulheres Lésbicas que colocam que 40% das mulheres não contam que são lésbicas ou bissexuais quando procuram atendimento médico. É claro que nem sempre essa informação é essencial para o propósito daquela consulta, mas na perspetiva de quem trabalha na área da saúde da família sempre é importante conhecer o paciente, seu contexto familiar e social, suas perspectivas, identidades e medos, de forma a fazer uma medicina que olha para a pessoa como um todo, e não como um conjunto de órgãos ou uma lista de doenças. Por outro lado, muitas vezes saber a orientação sexual ou a identidade de gênero do paciente faz bastante diferença, e quando o assunto não é abordado o profissional acaba presumindo que o indivíduo é cisgênero e heterossexual, o que pode gerar um atendimento inadequado.
Vivi um exemplo muito curioso disso com um interno (estudante de medicina) que fazia estágio onde eu trabalhava. Era um dia muito cheio de pacientes então pedi para que ele atendesse um moço que eu tinha diagnosticado com sífilis na semana anterior. Seria uma consulta simples porque precisava apenas conferir que ele tinha feito os remédios corretamente e coletado o exame de sangue, e poderia passar todo o restante do tempo da consulta orientando sobre cuidados de saúde sexual. Pensei comigo mesma - muito satisfeita com a minha sagacidade! - que seria ainda mais interessante que o interno fizesse esse segundo atendimento pois tinham idades próximas e ambos eram homossexuais, então talvez a identificação permitisse que o paciente se sentisse mais confortável para tirar dúvidas, mas não me ocorreu explicar isso ao aluno. Uma hora depois, o interno retornou para minha sala bastante satisfeito com a consulta, contando que tudo tinha corrido bem. Quando indaguei sobre se o paciente tinha ficado mais à vontade para conversar abertamente sobre ser gay, o interno ficou bastante chocado ao perceber que não somente isso não tinha ocorrido, como também por ter feito recomendações que não eram pertinentes para aquele paciente, pois englobavam somente práticas heterossexuais e prevenção de gravidez.
A verdade é que infelizmente os profissionais de saúde de forma geral não são treinados e capacitados para abordar com naturalidade a diversidade sexual. Essa lógica cisheteronormativa já vem da nossa criação na sociedade e é reforçada ao longo da formação de tal forma que para fazer uma medicina mais diversa e acolhedora precisamos fazer um exercício diário de vigilância e desconstrução.
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